quarta-feira, 25 de maio de 2011

Post-it de uma gata quase adormecida


Afinal não sou a única (e só por isso interrompo o meu longo silêncio, que já não vos visitava há que tempos). Mas voltemos ao assunto que me trouxe de volta ao teclado; ao que parece, a caríssima companheira para quem trabalha esta I. também não gosta de visitas de quatro. É para verem, para saberem o que nós sofremos. O meu perseguidor também era o demo, que eu bem sei que era, apesar de cá em casa começarem logo com o  "coitadinho, sem pai nem mãe". Insuportáveis, é o que vos digo, essa gatalha toda que nos entra pelo asseio dentro de pata estendida e com miaus de o "peixe para o povo". Mas não, comigo não, que sou gata desocupada, mas nada estúpida. Não há cá biscoitos para mais ninguém, nem lata para outros que não eu. 
Conselho à felina em apuros (peço imensa desculpa por lhe desconhecer o nome): ponha-o a mexer e reeduque as criaturas que trabalham para si. Coloque o proletariado no seu devido lugar, companheira de agruras. É que hoje dão um prato, amanhã dão-lhe cama e não tarda nada tem que dormir acompanhada. E mal acompanhada. Não se meta nisso, cara amiga. Ouça o meu conselho, que já cá ando há uns aninhos e tive uns quantos a rondar-me a propriedade. Xô gato!

terça-feira, 24 de maio de 2011

Um lançamento é para despachar

No átrio do Teatro Municipal Baltazar Dias, em meia hora, falou-se de Mulheres e Teologia. O pretexto, o lançamento do livro E Deus Criou a Mulher – Mulheres e Teologia. O convidado, Anselmo Borges, um dos organizadores do Congresso agora foi apresentado em livro. O contexto, a Festa do Livro do Funchal. 
Uma apresentação que estava agendada para as 17:30 mas que começou muito depois das 17:45, por ajustes de agenda de última hora. A eles voltaremos.

Anselmo Borges começou por chamar a atenção de que o/a leitor/a não pode esquecer o contexto histórico na leitura dos textos sagrados, que é perigosa quando literal. Assim, um/a leitor/a atenta está consciente que se tratam de textos que procuram responder à pergunta fundamental que é também a da religião, a saber, o quê ou quem traz liberdade e sentido último ao ser humano. E que, portanto, a finalidade das religiões e dos seus textos é trazer liberdade e não opressão e quando se tornam o seu inverso – quando se tornam opressão em vez de libertação, então deve ser posta de lado.
Deste modo, continua Anselmo Borges, uma hermenêutica feminista dos textos sagrados deve ser uma hermenêutica da suspeita, em que é preciso não esquecer que os seus escritores e intérpretes foram, ao longo, dos tempos, os homens, os varões. Assim, reiterou, uma hermenêutica feminista tem que ter uma leitura crítica da História e tem que ser uma hermenêutica da memória, que procura o lado esquecido da História, que vai para além da História dos vencedores porque são os que dominam o discurso. E a verdade é que durante muito tempo, a mulher não deteve qualquer poder.
Exortou também à reformulação dos próprios rituais religiosos, que influenciam a auto-identidade da mulher: batizada pelo padre, pelo bispo, pelo papa, em nome do pai, do filho e do espírito santo. É necessário desconstruir essa imagem masculina de Deus, porque «se Deus é masculino, então o masculino é divino, porque é Deus.»
É preciso não esquecer (como tem acontecido) que deus é assexuado e não a imagem patriarcal dominante, que é apresentada muitas vezes como opressora, autoritária; Deus Pai, que é juiz, rei e soberano.
Exortou ainda à urgência de que a crítica hermenêutica faça parte de todas as religiões, para que estas tenham capacidade de se reformularem em função do tempo em que estamos e não em função do tempo em que estivemos. E este trabalho é um trabalho de toda a humanidade, porque de direitos humanos se trata - «nada daquilo que é humano me é estranho». E lembrou Kant que, já no século XVIII,  considerou que o ser humano deve ser sempre um fim em si mesmo e nunca um meio.

Finda a apresentação, o ajuste de agenda  proibiu questões ao público (que só depois veio saber porque não havia sido aberto espaço para debate) e convidou o autor a abandonar a mesa em que assinava livros aos/às assistentes que o solicitavam, pelo que a tarefa que teve continuar em cima do joelho, ao fundo da sala. 
Ao que parece, o ajuste de agenda apenas disse respeito ao lançamento deste livro. Tudo o resto, continuou placidamente na mesma. 

terça-feira, 17 de maio de 2011

O poder da gravata

Caravaggio

Nos últimos dias, a clássica abertura dos telejornais nacionais -  que costuma ser um campo verde com uns atletas a correr atrás de uma bola - tem sido substituída pelo drama privado - com consequências públicas - do  futuro ex-director do FMI. 
Um Dominique Strauss-Kahn (DSK) algemado, sem gravata e, sobretudo, sem sorriso ou sem ironia,  tem invadido os ecrãs e suscitado reacções acesas. Segundo o correspondente do canal do Estado em Paris, @s frances@s não gostaram nada de ver um cidadão da República naqueles preparos e "mostram grande indignação e pouca empatia com a alegada vítima". O pivôt da RTP precisou de confirmar o que ouvira: "demonstram pouca solidariedade com a (alegada) vítima?". A explicação é que @s frances@s não esperavam ver tal cidadão ser tratado com um "criminoso comum" - afinal de contas, aquela coisa - muito comum na legislação do hemisfério norte - de tod@s serem iguais perante a lei, independentemente da classe profissional e/ou da casta social não é para ser aplicada: deve ser só porque fica bem estar na lei. Podemos então deduzir que se, sob a mesma acusação, fosse detido e filmado algemado lado a lado com outros acusados, um 'comum' cidadão francês os seus conterrâneos abanariam a cabeça em sinal de assentimento e se calhar até organizavam uma claque de apoio ao apedrejamento à condenação do citoyen.
A República francesa pode ter tido o seu início há 219 anos, no seguimento de uma Revolução que decapitou sem piedade nobreza e o povo ralé, contudo, a mentalidade que concede privilégios segundo as castas continua a residir.
Por cá, podemos apenas especular com humor como lidaria a justiça lusa com tal caso. Contudo, o ex-presidente Mário Soares (MS) - num canal televisivo - afirmou não estar "surpreendido com a acusação" uma vez que "já lhe eram conhecidos outros casos" . Porém, quando o repórter lhe perguntou se DSK estaria ainda em condições de ser candidato à presidência francesa, MS não se excusou a tecer elogios ao grande homem político e ao grande homem socialista.
É que por cá, o pessoal não é político. No fundo, tudo se resume num belo ditado popular: "faz o que eu digo não faças o que eu faço".

domingo, 15 de maio de 2011

sábado, 14 de maio de 2011

«E morderam-se as bocas abrasadas»*

Na história da nossa poesia, há traços de injustiça que teimam em desenhar os contornos da nossa (falta de) memória.
Judith Teixeira, a mulher desavergonhada cujos poemas Marcelo Caetano se gabou de queimar é continuamente lançada na fogueira do nosso esquecimento. Essa poeta de Sodoma, que juntamente com António Botto (com Canções) e Raúl Leal (com Sodoma Divinizada), acendeu a pira do jovem Marcelo, indignado com a versalhada ignóbil que empestava a sua cidade - o mesmo Marcelo Caetano que, sensivelmente 50 anos depois, tentaria queimar essa outra papelada imunda que empestava o seu País, as Novas Cartas Portuguesas, da autoria das três Marias (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa).
Voltemos a Judith Teixeira, mulher poeta que nos anos 20 do século passado desafiou com a sua obra poética e incendiou a veia inquisitorial do que se avizinhava. Arrisco dizer que se não foi ainda devidamente resgatada, tal deve-se ao facto de ainda hoje não se perdoar a uma mulher ter escrito o que escreveu na época em que o fez. O cânone continua a sacrificá-la e Castelo de Sombras, Decadência e Nua, continuam a sustentar o peso das cinzas do esquecimento.

Adeus
Sim, vou partir.
E não levo saudade
de ninguém...
Nem em ti penso agora!...
Julgavas que a tristeza desta hora
fosse maior que a firme vontade
que eu pus em destruir
o luminoso fio da ternura
que me prendia ao teu olhar?...
Julgaste mal;
Eu sei amar,
mas meu amor,
o que eu não sei,
é ser banal!
(...)

*Do poema Perfis Decadentes



sábado, 7 de maio de 2011

A Voz [feminina] Humana

Não é certamente por acaso que a primeira parte de 'Maina Mendes' é consagrada à automutilação da voz. Poucas coisas foram oferecidas com mais condescendência ao sexo feminino do que a palavra como glosa infinitamente reversível e nula de uma situação que podia suportar «falando-a», com a condição de não a transformar. (...)

Solve Sundsbo

É [essa] palavra absoluta, por sua, que Maina Mendes reclama, herdeira de séculos de silêncio e de ira sob eles soterrada, fazendo própria e grosseria libertadora que da rua masculina sobe até à sua janela de prisioneira carregada de asas precoces e de sonhos de «atilada fêmea». (...)

A mudez de Maina Mendes é negação de negação, um refluir mágico para o ponto zero a partir do qual poderá, mais tarde, inventar a fala, nem masculina, nem feminina, apenas autónoma e soberana, que os homens usufruem sem riscos e desde sempre, por «direito divino». 

Maina Mendes, o romance, é justamente a epopeia, muito portuguesmente elegíaca, da invenção dessa fala, a sua inevitável e magistral recuperação.

Eduardo Lourenço, 1977, sobre o romance Maina Mendes, de Maria Velho da Costa

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Nós e Eles

Acordo com a notícia do dia. O inimigo n.º 1  foi abatido. O Presidente anuncia o feito invocando o nome de Deus, que abençoa uma vez mais aquele País (que é grande, unido e justo - como Deus). O povo rejubila aos milhares nas ruas, dando graças pelo estrondoso sucesso de toda a operação. Exultam perante a notícia da morte do infiel, abençoam o duro golpe na estrutura do inimigo. Só faltou mesmo  incendiar a bandeira (mas o inimigo n.º 1 não tinha bandeira).

Boa Semana

Walk with the Cave Bear